Samuel Dicken dá um xeque-mate nos ultraprocessados “saudáveis”

Samuel Dicken, cientista clínico britânico, liderou ensaio clínico que compara dietas minimamente processada e ultraprocessada

Foto: Arquivo pessoal; O Joio e O Trigo

Pesquisador britânico, que liderou o ensaio clínico mais longo já realizado para comparar dietas minimamente processada e ultraprocessada, mostra que mesmo versões “melhoradas” dos ultraprocessados não entregam os mesmos benefícios à saúde

“É bom se autorrefutar”, disse Samuel Dicken, em meio ao relato da sua experiência pesquisando ultraprocessados. O pesquisador em ciências clínicas britânico trilhou um caminho comum a muitas pessoas quando se deparam com a Classificação NOVA: ceticismo.

A primeira vez que ouviu o termo ultraprocessado, por volta de 2015, Dicken a registrou como um sinônimo para junk food. Ele estava cursando Ciências Naturais na Universidade de Cambridge e era pesquisador do Sistema de Saúde Nacional britânico (NHS, na sigla em inglês), onde estudava a relação entre o risco cardiovascular e a dieta seguida por um grupo de pacientes. “Eles tinham uma anomalia genética e não podiam consumir proteína. A dieta deles é bem específica, não podem comer, por exemplo, peixe, nozes ou carnes processadas, e parte da dieta consistia em suplementos ultraprocessados”, recorda. 

À época, já era sabido que o consumo de alimentos com altas quantidades de sal, açúcar e gorduras saturadas estava associado ao risco de desenvolvimento de obesidade e doenças crônicas não transmissíveis. O grau de processamento não parecia ser relevante para muitos pesquisadores, ainda que os primeiros estudos observacionais começassem a mostrar as mesmas associações. 

Em 2019, já no mestrado em Ciências Clínicas pela Universidade de Newcastle, Dicken se depararia com o estudo que mudaria a sua percepção. Kevin Hall, à época integrante dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH, na sigla em inglês) dos Estados Unidos, foi o pesquisador principal do primeiro ensaio clínico sobre ultraprocessados, cujos resultados levaram a uma mudança de aceitação na teoria sobre os males associados a esses produtos. “Foi nesse momento que realmente começou meu interesse em alimentos ultraprocessados. [A NOVA] é, claramente, uma mudança de perspectiva sobre como entender a dieta: em vez de ser reducionista e olhar apenas para os componentes e dizer ‘é tudo equivalente’, até então ninguém estava olhando para o nível mais amplo”, comenta.

Em 2021, entrou no doutorado em Medicina Experimental e Translacional na University College London. Dicken é o responsável pelo ensaio clínico randomizado mais longo até agora – ele acompanhou 55 pessoas por seis meses. O artigo, publicado na Nature Medicine em 4 de agosto, mostra os resultados de duas dietas que seguem as recomendações do guia alimentar do Reino Unido. Uma delas com preparos feitos do zero e outra, com ultraprocessados com baixos teores de sal, açúcar e gordura saturada. 

Ambas as dietas promoveram perda de peso, mas após a alimentação com refeições feitas do zero, os participantes reduziram gordura corporal, gordura visceral e os níveis de triglicerídeos. “A perda de peso extra na dieta minimamente processada sugere que seja em áreas favoráveis para uma melhoria a longo prazo da saúde cardiometabólica”, comenta. Para Dicken, a Classificação NOVA pode ser uma lente complementar às diretrizes do guia alimentar britânico, lançado em 2016, dois anos após o Guia Alimentar para a População Brasileira, que foi pioneiro em incluir o nível de processamento dos alimentos em suas diretrizes. 

Mas a NOVA vai além do nível de processamento dos alimentos, diz Dicken. “É também sobre o propósito do processamento. Um ciclo que vai dos motores financeiros para criar o produto, à demanda e ao consumo, e depois retorna nesse loop. Estou escrevendo algo sobre isso, fazendo um esforço para comunicar melhor o que a NOVA realmente apreende.”

Os resultados do ensaio clínico põem em xeque a retórica da indústria, adotada por muitos veículos de imprensa nacional e internacional, de que ultraprocessados podem ser considerados saudáveis se apresentarem baixos teores de sal, açúcar e gordura saturada. Leia a reportagem do Joio sobre o estudo de Dicken. “Eu pensava que não poderia haver diferença entre as duas dietas, se ambas seguem as recomendações alimentares. É bom se autorrefutar”, conclui. 

Confira os principais trechos da entrevista:



As autoridades de saúde do Reino Unido e dos EUA costumam dizer que não há evidências sólidas de que os ultraprocessados sejam ruins para a saúde, que é possível ter uma boa dieta misturando alimentos ultraprocessados com alimentos minimamente processados, como frutas e vegetais. Seu artigo é, de alguma forma, um desafio para essas autoridades de saúde?

Sim. Há dois pontos principais neste estudo. O primeiro é que as orientações alimentares atuais funcionam. Em ambas as dietas, houve melhorias. Mas quando a dieta era minimamente processada, vimos reduções significativamente maiores no peso, na massa de gordura e também melhorias muito maiores no controle da compulsão alimentar. Isso também pode ajudar na manutenção do peso a longo prazo. Uma das principais dificuldades no Reino Unido é entender se a classificação NOVA deve substituir totalmente as diretrizes atuais ou ser apenas uma lente complementar.

Outro ponto importante em relação às dietas que fornecemos é que os ultraprocessados típicos, de baixa qualidade nutricional, são bastante baratos. Mas a dieta de ultraprocessados que usamos no ensaio (com alegações de saúde e de melhor valor nutricional) teve um custo semelhante ao da dieta minimamente processada, que foi preparada do zero por um fornecedor independente.

Então, se o governo quer superar as grandes barreiras para uma alimentação saudável no Reino Unido, sendo o custo a principal delas, o obstáculo financeiro vai ser semelhante, independentemente do grau de processamento. Mas, ao adotar uma dieta minimamente processada, é mais provável alcançar maiores benefícios seguindo o guia alimentar.

Em setembro vou me reunir com o governo do Reino Unido para apresentar o artigo e discutir alguns desses pontos, o que deve ser animador. Mas é isso: pela primeira vez temos evidências robustas de que existe um benefício além do que já se recomenda atualmente.

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Por que você decidiu conduzir o estudo sem controlar o ambiente dos participantes, mantendo-os na própria rotina? Para algumas pessoas, isso pode enfraquecer o estudo, já que você não consegue controlar tudo ao redor deles. Ao mesmo tempo, essa decisão trouxe ineditismo para o campo de estudo, certo?

Duas razões. Uma é o tempo de duração, mantê-las na rotina permite o estudo durar mais tempo. O ensaio do Kevin Hall e o que foi feito no Japão no ano passado, os participantes ficaram em enfermarias hospitalares por uma ou duas semanas. Você não pode manter as pessoas internadas por tanto tempo. 

Segundo, permite entender o impacto dessas dietas no mundo real. Essas pessoas vão ao trabalho, vivem sua vida diária e lidam com seus estresses. É algo que você não consegue observar em uma enfermaria hospitalar. A desvantagem é que não temos esse nível de controle sobre o que os participantes comem. Mesmo que disséssemos às pessoas o que comer, elas ainda teriam que decidir o que fazer, pensar no custo para isso.

Retiramos esse obstáculo ao entregar as refeições em casa, prontas para consumo. Tudo que eles precisavam fazer era comer o quanto quisessem. É uma experiência intermediária, que nos dá compreensão do mundo real. Mas ainda há limitações, porque as pessoas poderiam não seguir a dieta fornecida. Para isso, elas teriam que comprar outros alimentos por conta própria, e fornecer todas as refeições torna isso menos provável.


Vemos, tanto na mídia estrangeira quanto na brasileira, esses ultraprocessados serem chamados de “menos piores”. E acho que seu artigo desafia esse discurso. Você acha que o estudo saiu no timing certo? 

Obviamente, diferentes ultraprocessados têm diferentes qualidades nutricionais. Alguns são mais densos em calorias, outros menos. O impacto na saúde não é o mesmo. Alguns têm risco maior, como açúcar, doces, bebidas e os de origem animal. O que ainda não foi determinado adequadamente é se esses ultraprocessados “melhores” equivalem a alimentos minimamente processados. Estudos observacionais não dão detalhes suficientes.

Nosso estudo mostrou que, embora existam ultraprocessados que trazem mudanças favoráveis em relação a uma dieta típica de ultraprocessados pobres nutricionalmente, eles não são tão bons quanto uma dieta minimamente processada. 

Não se pode dizer que todos os ultraprocessados são necessariamente ruins, mas o processamento modifica o efeito da dieta. Se você tem uma dieta nutricionalmente pobre, seja minimamente processada ou ultraprocessada, não será bom. Mas quando é ultraprocessada, parece ser ainda pior. E quando você tem uma dieta saudável e balanceada, ela é boa; mas, se for ultraprocessada, não é tão boa. Isso modifica o efeito das orientações dietéticas atuais [do Reino Unido].

Quanto ao timing, acho que há muita discussão e debate sobre isso. Algumas pessoas se fixam apenas nos resultados da dieta ultraprocessada, sem comparar com a dieta minimamente processada, que teve desempenho ainda melhor. Então algumas pessoas usam isso em sua própria narrativa, dizendo que uma dieta ultraprocessada pode ser saudável.


É exatamente essa a minha próxima pergunta: como você explica o efeito positivo da dieta com ultraprocessados nos participantes? Você se preocupa que esses resultados possam ser tirados de contexto pela indústria alimentícia ou por céticos e críticos da classificação NOVA?

Primeiro ponto: lembrar da dieta basal dos participantes. Eles já consumiam muitos ultraprocessados. Tirando o consumo de carne vermelha, que estava dentro das orientações do guia alimentar do Reino Unido, eles não cumpriam nenhuma outra recomendação atual, nem de gordura saturada, nem de fibras, frutas ou vegetais. Ao fornecer uma dieta saudável e balanceada, mesmo que ultraprocessada, houve mudanças favoráveis.

Quanto a interpretações equivocadas: pessoas muito contrárias à Classificação NOVA provavelmente distorceriam qualquer resultado. Você poderia ter observado um ganho de peso de 10 quilos na dieta ultraprocessada e uma perda de 10 quilos na minimamente processada e essas pessoas encontrariam alguma falha no estudo e o descartariam. Não vale se preocupar com isso. 

O importante é alcançar quem está no meio: os que entendem o valor da Classificação NOVA, mas que ainda não estão certos sobre o impacto do processamento dos alimentos. O estudo tem dois grupos: quando se analisa o efeito da dieta ultraprocessada, deve-se considerar o contexto da dieta minimamente processada. 

Existem pessoas com opiniões muito fortes sobre vários assuntos, influenciadas comercialmente ou envolvidas por conflitos de interesse. Mas também acho que algumas pessoas têm uma mentalidade muito forte de “deixe estar”, de defender que as pessoas façam o que quiserem. Pela linguagem delas, não parecem se importar com melhorar a saúde pública. Parece que acreditam que os ultraprocessados sejam apenas produtos com alta densidade energética.


O que podemos fazer em relação aos ultraprocessados? Devemos abordar como esses alimentos são projetados quanto ao sabor e marketing? Discutir ambientes alimentares? Como enfrentar esse problema?

Você está absolutamente certa. Nossa mensagem central é que precisamos parar de focar no individual. Respondi a muitas perguntas do tipo “o que meus leitores ou espectadores podem fazer?” nas últimas semanas. Não é esse o ponto. A maior barreira no Reino Unido e nos EUA é o custo de uma dieta saudável, não sei muito sobre o Brasil nessa questão.

Mas, como você disse, tem a questão dos ambientes alimentares. Os ultraprocessados não são apenas um produto. Eles são feitos para serem mais baratos e acessíveis. É a promoção “leve dois pague um” e o fato de você acabar comprando mais do que precisa, e isso gera mais lucro às indústrias. É o marketing agressivo, a gestão da marca e também a rotulagem com alegações nutricionais com um verniz de saúde. É uma questão desconfortável para os governos mudarem o ambiente alimentar.

Que os alimentos sejam produzidos visando lucro não é bem o problema, porque não existe um mundo completamente não capitalista. O problema é que os alimentos são produzidos exclusivamente visando o lucro e as indústrias alimentícias não levam em consideração nada além disso, nem o impacto na saúde, nem no meio ambiente.

Os produtos podem ser reformulados para serem mais saudáveis, e isso só é feito para ser uma ferramenta de marketing e aumentar os lucros. Ou quando precisam se adequar a regulamentações, evitar impostos ou perder dinheiro. É preciso que governos restabeleçam a saúde pública como parte interessada nessa discussão e ajam de acordo. Pode ser um incentivo para produção de alimentos saudáveis, pode ser uma regulamentação… não há uma estratégia única. 

Eu faço uma analogia com as mudanças climáticas. Todos estamos cientes que precisamos fazer algo a respeito. Mas somos parte de um sistema global. Um país decidir parar com todas as emissões de gases de um dia para o outro não significa que ficará isento das consequências. Precisamos que os governos ajam. A verdade incômoda é que precisamos de ações maiores e não simplesmente dizer a alguém na rua para comprar uma maçã em vez de uma barra de chocolate, infelizmente.

Mas é 100% possível. Vemos como a demanda do consumidor gera a reformulação de produtos. Tudo se resume a prioridades.


Você pretende realizar um ensaio mais longo para ver se a perda de peso leva a melhorias nos marcadores de risco cardiometabólico? Seria possível um ensaio que durasse um ano ou mais?

Ótima pergunta. Em relação às mudanças de peso, encontramos o mesmo que Kevin Hall, é possível ver essas mudanças em um curto espaço de tempo. Mas alguns dos marcadores secundários, como colesterol, hemoglobina glicada e glicose, podem precisar de mais tempo de teste para perceber diferenças entre as dietas, especialmente com aquela diferença na perda de massa gorda que observamos.

Idealmente, faríamos um ensaio que durasse um ou dois anos. Mas o problema é que o custo seria enorme, além do tempo: levamos quatro anos para conduzir um ensaio de seis meses com 55 pessoas. Até poderia ser feito um mais longo, mas não há financiamento disponível.

Por isso que tentamos usar outras medidas. Por exemplo, modelamos a perda de peso ao longo de um ano usando alguns modelos do Kevin Hall. E, de forma semelhante, usamos nossas evidências mais amplas para projetar o que essa perda de peso ou a redução nos marcadores secundários poderiam significar.

Também por isso que fazemos a triangulação: pegamos os dados do ensaio clínico, combinamos com dados observacionais e com os dados do estudo em internação do Kevin Hall. E tudo parece se alinhar, fazer sentido dentro do mesmo quadro. Isso nos ajuda a pensar que, se há limitações no desenho de algum desses estudos, elas são compensadas por outros. Nosso ensaio clínico é no mundo real, o do Kevin é em ambiente controlado de internação, e os estudos observacionais não conseguem necessariamente estabelecer a causa, mas todos apontam para os mesmos achados.

Então, sim, sempre podemos fazer estudos mais longos, estudos maiores. Mas há um limite do que é possível. Especialmente em ensaios de dieta, é difícil realizá-los. Quando você fornece a dieta inteira, há pouquíssimos ensaios que oferecem toda a alimentação gratuitamente aos participantes por mais de seis meses. E mesmo os que existem, são apenas alguns poucos que passam de 12 semanas.

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